Machado de Assis não apenas escreveu histórias; ele esculpiu personagens que resistem ao tempo, às mudanças sociais e às novas interpretações. Suas figuras literárias não são meros produtos de uma narrativa bem construída, mas manifestações profundas de arquétipos universais, filtradas pelo olhar irônico, filosófico e, muitas vezes, cruel do autor.
Mas de onde vieram essas figuras inesquecíveis? Que arquétipos povoavam o inconsciente do escritor, dando vida a personalidades tão complexas quanto Bentinho, Capitu, Brás Cubas e Conselheiro Aires?
Suas personagens são registros simbólicos de dilemas humanos intemporais. Elas são, ao mesmo tempo, senhores do próprio destino e marionetes de uma sociedade que os molda. Para compreender a genialidade de Machado de Assis, precisamos mergulhar não apenas na sua literatura, mas nos arquétipos que permeiam suas criações – figuras que, como sombras, o acompanharam e se infiltraram nos sonhos de sua ficção.
O Arquétipo do Observador Onisciente: A Voz Que Tudo Vê, Mas Nada Altera
Se há um fio invisível que une as narrativas machadianas, ele é sustentado pelo olhar atento do observador. O narrador de Machado de Assis não é neutro. Ele vê, julga, ironiza, mas muitas vezes se abstém de agir, deixando que o destino de seus personagens se desdobre como um jogo cínico do acaso.
Brás Cubas, protagonista e narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas, é o arquétipo do observador absoluto, aquele que, ao narrar sua própria vida, o faz sem arrependimento ou remorso, oferecendo ao leitor a mais cruel e impassível das reflexões: a de que a vida, no fim das contas, talvez seja uma sucessão de episódios fúteis. Ele é aquele que enxerga, mas não muda; aquele que expõe, mas não sente. Seu olhar é um espelho frio e sarcástico da sociedade.
Esse arquétipo do observador onisciente também se reflete em Conselheiro Aires, que permeia o universo das últimas obras de Machado de Assis. Ele não é um protagonista ativo, mas uma presença silenciosa que registra a decadência ao seu redor, sem jamais se comprometer totalmente com ela. Sua neutralidade aparente não o exime da responsabilidade de enxergar, apenas o blinda das consequências do que vê.
O arquétipo do observador nos romances de Machado é um lembrete de que aqueles que assistem ao espetáculo da vida sem se envolver são, muitas vezes, os mais conscientes do absurdo humano.
O Arquétipo da Ambiguidade Moral: Quando a Verdade Nunca é Absoluta
Machado de Assis não oferece personagens de moralidade inquestionável ou vilões de intenções transparentes. Sua genialidade está em construir figuras que desafiam os julgamentos fáceis, tornando-se ao mesmo tempo cativantes e perturbadoras.
Capitu, talvez a personagem mais inesgotável da literatura brasileira, é a maior prova disso. Ela não se encaixa em uma definição única: é sedutora ou inocente? Traidora ou vítima de um delírio obsessivo? Sua natureza é fluida, escapa à fixidez das categorias.
O que Machado cria em Dom Casmurro não é apenas um romance sobre ciúme, mas um estudo sobre a ambiguidade da verdade. A narrativa de Bentinho é falha, contaminada por suas inseguranças e pelo desejo de encontrar uma resposta definitiva para aquilo que talvez nunca tenha ocorrido.
Capitu, por sua vez, torna-se um arquétipo da mulher indecifrável, não porque seja essencialmente enigmática, mas porque é aprisionada pela visão fragmentada do narrador.
Essa ambiguidade moral também se estende a personagens como Rubião, de Quincas Borba, que transita entre a ingenuidade e a obsessão pelo poder, e Lobo Neves, de Esaú e Jacó, cuja habilidade de manipular o mundo ao seu redor faz dele um homem admirável e, ao mesmo tempo, absolutamente cínico. Machado de Assis construiu arquétipos que desafiam certezas e mostram que a verdade, muitas vezes, depende apenas de quem a conta.
O Arquétipo do Homem Que Constrói Sua Própria Perdição
O destino nunca é gentil com os protagonistas machadianos. Eles não apenas sofrem as ironias da vida, mas, de maneira quase trágica, são os arquitetos de suas próprias ruínas. Bentinho destrói seu amor por Capitu não porque ela o trai, mas porque ele acredita que sim. Rubião perde sua fortuna e sua sanidade porque se deixa consumir pela ilusão do poder. Brás Cubas morre sem ter conquistado nada de concreto, mas também sem arrependimentos – uma espécie de Ulisses fracassado, um viajante do vazio.
Esse arquétipo do homem que cava sua própria cova está presente em toda a obra de Machado. Seus personagens não são vítimas do destino, mas de si mesmos. Eles constroem suas desgraças passo a passo, iludindo-se de que estão no controle, quando, na verdade, são apenas peças de um jogo do qual nunca conheceram as regras.
Essa é talvez a lição mais dura da literatura machadiana: não há um grande inimigo a ser derrotado, não há forças sobrenaturais ou conspirações divinas. Há apenas o homem, preso em sua própria teia de enganos e ilusões.
O Arquétipo do Eterno Expectador: A Vida Que Nunca Começa
Muitos personagens machadianos compartilham uma característica peculiar: a inação. Eles não são heróis movidos pela coragem ou pela urgência da vida. Pelo contrário, são aqueles que esperam, que adiam, que postergam a própria existência.
Santiago, de Esaú e Jacó, não consegue escolher entre duas forças que disputam sua vida. Ele oscila entre os gêmeos que simbolizam diferentes caminhos, sem jamais decidir qual trilhar. A mesma hesitação permeia a vida de outros personagens, como Aires, que atravessa as páginas sem jamais se comprometer com a realidade.
Esse arquétipo do eterno expectador reflete uma angústia existencial: a de que a vida pode passar enquanto se decide como vivê-la. Para Machado de Assis, talvez a maior tragédia não fosse a morte, mas a falta de participação na própria história.
O Duplo e a Ilusão da Identidade: O Arquétipo da Máscara
A identidade nos romances de Machado de Assis nunca é fixa, nunca é uma peça sólida e imutável. Pelo contrário, ela é maleável, fluida, constantemente refabricada pelo olhar dos outros, pelas circunstâncias e, sobretudo, pela narrativa que cada personagem tenta construir de si mesmo.
Nenhum autor brasileiro trabalhou tão bem o conceito do duplo, da persona que se esconde atrás de um véu de incertezas, e da máscara que nunca se fixa completamente no rosto que deveria definir.
Capitu, essa entidade inesgotável da literatura brasileira, talvez seja o maior exemplo do arquétipo da máscara. Machado não nos permite ver quem ela realmente é — ele nos dá apenas fragmentos, reflexos distorcidos pelo olhar paranoico de Bentinho. Seria ela uma mulher infiel ou apenas vítima da obsessão ciumenta de um homem que a reduziu a um enigma? Seria ela manipuladora ou apenas uma mulher independente demais para se conformar às expectativas sociais que seu marido impunha?
A resposta nunca vem, porque a resposta, talvez, nunca tenha existido. Capitu não é uma personagem de certezas, mas de possibilidades. Sua identidade não lhe pertence completamente; ela é moldada pela narrativa de quem a observa, e a dúvida que paira sobre ela é justamente o que a torna imortal.
Mas esse jogo de duplos não se restringe a Capitu. Ele se espalha como um vírus pela obra machadiana, revelando personagens que nunca são apenas aquilo que aparentam.
Rubião, em Quincas Borba, transita entre a lucidez e a loucura, sem que possamos definir exatamente onde termina um estado e começa o outro. Seu delírio não surge de um momento para o outro; ele cresce lentamente, infiltrando-se em sua percepção da realidade até que ele se torna um homem que vive entre dois mundos, incapaz de distinguir qual deles é verdadeiro. Rubião, como Capitu, é um personagem que escapa de si mesmo, uma identidade partida, fraturada pela ironia do destino.
E há Bentinho, claro, que não é apenas o narrador de Dom Casmurro, mas um personagem que se reescreve a cada frase. Sua obsessão por provar uma verdade que nunca pode ser comprovada transforma sua história em um labirinto de versões contraditórias. No fim, o que resta de Bentinho é apenas a casca de um homem que passou a vida tentando justificar sua própria tragédia. Ele não é mais o jovem que amava Capitu, nem o marido que a condenou, nem o viúvo que lamenta sua perda. Ele é apenas Dom Casmurro — um nome, um título, uma máscara que ele mesmo construiu para se proteger de um passado que nunca conseguiu aceitar por completo.
Esse jogo de duplos revela uma verdade central da literatura machadiana: a identidade não é algo que possuímos, mas algo que nos escapa constantemente. Ninguém é uma única coisa. Todos somos fragmentos, pedaços de versões conflitantes de nós mesmos, presos em narrativas que nem sempre podemos controlar.
O Arquétipo do Homem Que Perde Tudo: O Destino Como Farsa
Mas se a identidade é uma ilusão maleável, o destino, para os personagens de Machado, é uma farsa cruel. Suas histórias não são tragédias no sentido clássico, onde os heróis enfrentam desafios e sucumbem a forças maiores. Em Machado, os personagens não são heróis — são homens comuns que caem porque acreditaram demais em suas próprias ilusões.
Rubião é um desses homens. Ele herda uma fortuna, e com ela vem a ilusão de que o dinheiro lhe trará poder e estabilidade. Mas a riqueza, ao invés de torná-lo invulnerável, apenas acelera sua queda. Ele acredita ter conquistado um futuro glorioso, mas a única coisa que constrói para si é um delírio grandioso, que o consome até que nada mais reste. Ele não é derrotado por inimigos externos, mas pela própria impossibilidade de entender que sua ascensão nunca foi real.
O mesmo acontece com Bentinho, que não perde Capitu por culpa dela, mas porque ele próprio é incapaz de lidar com suas inseguranças. Ele quer possuí-la completamente, quer que sua vida se encaixe em uma história onde tudo faça sentido, onde os papéis estejam definidos e onde ele seja o protagonista virtuoso de um drama sem ambiguidades. Mas Capitu não cabe nessa narrativa. Ela transborda, escapa, se torna algo que ele não pode controlar. E assim, peça por peça, ele constrói sua própria ruína.
O arquétipo do homem que perde tudo não é uma história de grandes batalhas ou tragédias épicas. Em Machado de Assis, perder não é um evento repentino, mas um processo lento e inevitável. Os personagens não são vítimas do destino; são vítimas de si mesmos. Eles caem porque nunca souberam parar de caminhar na direção do abismo.
E essa talvez seja a grande ironia da obra machadiana: seus personagens acreditam ter controle sobre suas histórias, mas são apenas peças de um jogo que já estava decidido desde o começo. Eles se debatem, tentam resistir, inventam desculpas e versões alternativas de suas vidas, mas no fim, tudo o que podem fazer é assistir enquanto suas certezas se desmancham.
No universo de Machado, não há finais heroicos. Há apenas homens olhando para o vazio, tentando entender em que momento exato perderam tudo.
O Arquétipo do Eterno Expectador: A Vida Que Nunca Começa
Há uma espécie de personagem na literatura de Machado de Assis que não se define por atos heroicos ou por grandes desilusões, mas pela hesitação perpétua, pela falta de decisão que o impede de tomar as rédeas da própria vida. Esse personagem não é movido pela urgência de existir, mas pela indecisão, pela eterna espera de um sinal, de um momento propício, de uma justificativa que nunca chega. Ele não se atira ao mundo como os ambiciosos, nem se tranca em sua própria ruína como os derrotados. Ele simplesmente aguarda. E, ao esperar, assiste à própria vida escorrer pelos dedos, desperdiçando cada possibilidade de ação.
Santiago, de Esaú e Jacó, talvez seja a personificação mais pura desse arquétipo. Ele cresce entre duas forças que disputam sua identidade – os irmãos gêmeos Pedro e Paulo, símbolos de caminhos opostos –, mas jamais se compromete com nenhum dos lados. É um homem que vive no meio-termo, em um estado perpétuo de indecisão. Ele não age, não escolhe, não se define. E, ao não escolher, torna-se uma sombra de si mesmo, um personagem que atravessa a vida sem jamais deixar uma marca real nela.
Essa hesitação também habita Conselheiro Aires, um dos últimos personagens criados por Machado. Aires está sempre presente, sempre observando, mas nunca comprometido. Ele se mantém à margem dos acontecimentos, preferindo registrar a história dos outros a protagonizar a sua própria. Seu olhar é perspicaz, seu juízo é afiado, mas sua passividade o transforma em um espectador eterno daquilo que nunca terá coragem de viver.
Essa figura do eterno expectador reflete uma angústia que atravessa toda a obra machadiana: a de que a vida pode passar enquanto se decide como vivê-la. A de que o medo de errar pode ser um fardo tão grande que se torna a própria condenação. O medo do arrependimento leva à inação, e a inação, por sua vez, leva ao arrependimento de nunca ter tentado.
Machado parece nos dizer que existe um tipo de tragédia mais sutil do que a ruína dos grandes homens ou as paixões arrasadoras: a tragédia daqueles que nunca saíram do lugar, daqueles que adiaram tanto seus sonhos que, quando finalmente olharam para trás, perceberam que não havia mais tempo.
Conclusão
Os arquétipos que povoaram os sonhos e a literatura de Machado de Assis não são apenas personagens – são metáforas vivas de dilemas humanos que continuam a ressoar, séculos depois.
Seus observadores tudo enxergam, mas nada mudam. Suas máscaras escondem identidades tão fluidas que jamais podem ser plenamente compreendidas. Seus homens ambiciosos perdem tudo ao perseguirem obsessivamente seus desejos. Seus expectadores eternos esperam, esperam e esperam, até que percebem que já é tarde demais.
Cada protagonista machadiano carrega dentro de si um dilema eterno, um ciclo que se repete na literatura e na vida. Suas histórias não são apenas enredos, mas reflexões profundas sobre a condição humana. São espelhos, e quando olhamos para eles, muitas vezes vemos a nós mesmos, com nossos medos, nossas indecisões, nossas ilusões e nossos arrependimentos.
E é por isso que, mesmo depois de tanto tempo, Machado de Assis continua nos assombrando – porque, no fim, ele não escreveu apenas sobre o século XIX. Ele escreveu sobre nós. Sobre a hesitação que paralisa. Sobre a ilusão do controle. Sobre a vida que nunca começa porque estamos sempre esperando o momento perfeito.
E então, quando nos damos conta, a cortina já se fechou.